sexta-feira, 5 de outubro de 2012


PRÓLOGO DE APANHANDO AMORAS

                 
De repente, o trânsito ficou interrompido. Os carros foram parando um a um. As pessoas desciam de seus veículos e, admiradas, olhavam para o rio, agora sereno. Olhavam-se e se perguntavam o quê teria acontecido, o porquê da correria. Quando ficavam sabendo do ocorrido, consternavam-se. Um rapaz afoito preparou-se para se atirar no rio, mas foi contido por um senhor. Já não se podia fazer mais nada. Àquela altura, ela já devia estar bem longe. A correnteza, apesar da mansuetude da água, era muito forte. 

Debruçado na mureta, eu ainda olhava para as águas, e, perplexo e transtornado, repetia para mim mesmo: 

— Quase consegui! Mais alguns minutos e eu teria evitado! Eu a teria segurado, mas não houve tempo. Tudo foi tão rápido! Meu Deus! Ela tinha a idade da minha filha! 

Vi seu corpo sendo arrastado pelas águas. Nunca vou esquecer aquele rosto. Mais carros iam parando, e as pessoas que chegavam teciam todo tipo de comentários. Queriam saber o que havia acontecido e perguntavam aos presentes. Outros apenas observavam, mudos. O rapaz que quisera jogar-se no rio é quem contava os detalhes. Ele havia chegado logo depois de mim. Os curiosos olhavam para o rio, abanavam a cabeça. 

— Quem faria isso? - indagou, incrédulo, um sujeito. 

— Quanta loucura! Essa jovem devia estar drogada! - exclamou uma mulher para o marido. Ela ainda aproveitou para lembrá-lo de que tinham uma filha e que ela, a menina, vinha tendo reações estranhas e que permanecia o tempo todo no quarto. Ouvi-lhe dizer para o marido que, de repente, teve a impressão de que viveria algo parecido. Ela segurou no braço do marido e puxou-o de volta para o carro. Não queria ficar ali.   

Ainda debruçado na mureta, eu tentava entender: 

— Meu Deus! Outra vez não! ­- por um segundo, veio-me à mente a figura de Paulo. 

Ouvi quando um homem comentou com uma mulher que estava ao seu lado: 

— Quanta estupidez! 

Virei-me para ele e disse-lhe, desolado, olhando para baixo: 

— O que poderia justificar tamanha estupidez? O sofrimento? A dor? A rejeição? 

O homem me olhou e disse: 

— Como gostaria de saber os motivos de tal desgraça! 

Um homem de estatura baixa, calvo e de olhos brilhantes, olhando também para as águas barrentas, disse: 

— Não é a primeira vez e nem será a última. Algumas pessoas acham de morrer se jogando desta ponte. Há menos de dois anos, um rapaz se jogou daqui e, só depois de três dias, encontraram o corpo. 

Fechei os olhos e Paulo, outra vez, veio à minha mente. Vi seu rosto desfigurado pela angústia e pelo mistério. O que o teria levado a cometer essa mesma estupidez? Pensei. Até agora, ainda não tinha encontrado a resposta. 

— Não entendo. Por que abreviar a vida e deste modo? - desabafou um jovem ao meu lado, trazendo-me à realidade. 

A comoção era geral. Em momentos assim, costumamos ficar sensíveis. Penso até que se afloram sentimentos adormecidos que, voluntariamente, guardamos, na tentativa de nos proteger da dura realidade, mas que, em face de uma tragédia como esta, emergem, traindo-nos. E era isso que eu testemunhava naquele momento. Muitas pessoas, inclusive eu, deixando virem à tona suas mais escondidas emoções. Os comentários refletiam, talvez, nossas próprias angústias, nossos medos e, principalmente, a frustração de conhecer tão pouco a respeito da vida. E, ainda mais, de não saber o que pode levar uma garota na flor da idade a cometer tamanha estupidez. O que se passa na cabeça dos jovens de hoje? 

Eu ouvia as pessoas indignadas e me convencia de que algo no mundo estava errado. Aliás, tudo no mundo sempre está errado. 

— Não se tira uma vida sem motivos. - dizia um senhor de pele queimada pelo sol. 

— Se bem que, para alguns, basta apenas estar vivo. A própria vida é a causa de sua dor, pois acreditam que, pondo fim na vida, acabam-se os problemas. - ouvi isso de uma mulher pequenininha que, agarrada ao parapeito da ponte, demonstrava sua indignação. 

Meus olhos corriam pelas águas em busca de uma razão que não conseguia encontrar. Quem sabe essas águas barrentas pudessem me dar as respostas, mostrar-me alguma coisa que ninguém ali podia ver, mas que desse sentido a isso tudo? Ouvi as sirenes dos carros do corpo de bombeiros e da polícia que acabavam de chegar. 

Enquanto os bombeiros se preparavam para a busca do corpo, a polícia ouvia o jovem, que havia chegado logo depois de mim, acerca do ocorrido. Afastei-me. Não queria ter de responder as mesmas perguntas feitas pelos policiais. Nada que eu dissesse mudaria as coisas ou devolveria a vida àquela indefesa criança – isso mesmo, indefesa criança. Imaginava que aquela jovem tinha uma história triste, senão por que essa sua atitude? Só alguém com motivos muito fortes agiria assim. Nada mais podendo fazer ali, dirigi-me ao meu carro. Meus pensamentos estavam voltados para aquele rosto sumindo na correnteza. Senti que teria dificuldades para superar o que acabara de presenciar. Inexplicavelmente, uma angústia se fez dentro de mim e, por muito tempo, eu viveria com ela, até que tudo se resolvesse. 

Dei a partida no carro, queria sair dali. Não tinha mais o que fazer. Olhei pelo retrovisor e mais carros foram parando, mais curiosos foram amontoando-se na mureta. Como gostam de uma desgraça. Parecem urubus atrás de carniça. Era incrível como faziam questão de parar, mesmo sabendo que estavam atrapalhando em vez de ajudar. – pensei, desapontado. Tinha para mim que, a essa altura, ela já estaria longe dali. A correnteza a levara, como também havia levado o corpo de Paulo Henrique, que só foi encontrado três dias depois, a dois quilômetros rio abaixo. Uma dor aguda me apertou o peito. Eu devia ter feito alguma coisa. Se tivesse chegado a tempo para impedi-la, com certeza poderia ter conversado com ela, dissuadindo-a de fazer tal loucura. Teria insistido e, se fosse preciso, teria até mesmo levado-a a força dali. Talvez ela estivesse precisando apenas de um ombro amigo, de uma orientação, de uma luz. Como percebi que me sentia culpado, devia eu então pelo menos buscar as razões para aquela sua atitude. 

Imaginei que, certamente, mais pessoas estariam envolvidas neste drama e que cada uma ao seu modo contribuíra para esse trágico fim. Não era possível que uma garota resolvesse se jogar num rio como este sem que tivesse fortes motivos. Só mais tarde, eu viria a conhecer os detalhes e as circunstâncias que levaram aquela moça de apenas vinte anos a se jogar de cima daquela ponte. 

Como qualquer criatura que, sob o peso das adversidades, se deixa abater, Clarisse, e esse era seu nome, também sucumbiu ao peso que a vida lhe impôs. Ela, como tantos outros, não teve estrutura para suportar os solavancos da estrada que trilhou. 

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